quarta-feira, 20 de maio de 2015

RAÍZES DO SOFRIMENTO - Matthieu Ricard








              O budismo analisa e desmonta os mecanismos da felicidade e do sofrimento. De onde provém o sofrimento? Quais são as causas dele? Como remediá-lo? Pouco a pouco, ao mesmo tempo pela análise e pela contemplação, o budismo remota às causas profundas do sofrimento. É uma busca que interessa ao todo ser humano, seja ele budista ou não.

                O sofrimento é um profundo estado de insatisfação, talvez associado a dor física, mas que antes de tudo é uma experiência do espírito. É evidente que diferentes pessoas percebem de maneiras opostas as mesmas coisas, sejam elas agradáveis ou desagradáveis. O sofrimento surge quando o “eu”, que nós prezamos e protegemos, está ameaçado ou não obtém aquilo que deseja. Os mais intensos sofrimentos físicos podem ser vividos de maneiras muito diferentes, segundo nossa disposição de espírito. Além disso, os objetivos corriqueiros da existência – o poder, as posses, os prazeres dos sentidos, a fama – podem proporcionar satisfações momentâneas, mas não são nunca fontes de satisfação permanente e, cedo ou tarde, se transformam em descontentamento. Tais satisfações jamais trazem uma plenitude durável, uma paz interior invulnerável às circunstâncias externas. Ao perseguirmos objetivos mundanos durante toda a vida, temos tão pouca chance de atingir uma felicidade verdadeira quanto um pescador que lançar suas redes em um rio seco.
                Esse estado de insatisfação e característico do mundo condicionado, que, por natureza, só pode trazer satisfações efêmeras. Em termos budistas, diremos que o mundo ou ‘círculo` dos renascimentos, o sandara, é impregnado de sofrimento. Mas isso não é nem um pouco uma visão pessimista do mundo, é uma simples constatação.  A etapa seguinte consiste de fato em procurar remédios para esse sofrimento. Para isso, é preciso conhecer a causa dele. Em uma primeira análise, o budismo conclui que o sofrimento nasce do desejo, do apego, do ódio, do orgulho, da inveja, da falta de discernimento e de todos os fatores mentais que são chamados “negativos” ou “obscurecedores”, porque transtornam o espírito e o mergulham em um estado de confusão e insegurança. Essas emoções negativas nascem da noção de um “eu” que prezamos e queremos proteger a qualquer preço. Esse apego ao eu é um fato, mas o objeto desse apego, o “eu” não tem nenhuma existência real – não existe em parte alguma e de modo algum como uma entidade autônoma e permanente. Não existem nas partes que constituem o indivíduo – o corpo e o espírito -, nem fora dessas partes, nem no agregado delas. Se argumentarmos que o eu corresponde à reunião dessas partes, isso resulta em admitir que ele não passa de uma simples etiqueta colocada pelo intelecto à reunião temporária de diversos elementos interdependentes. Na verdade, o eu não existe em nenhum desses elementos, e sua própria noção desaparece assim que esses elementos se separam. Não desmascarar a impostura do eu é ignorância: incapacidade momentânea de reconhecer a natureza verdadeira das coisas. Portanto, é essa ignorância a causa última do sofrimento. Se conseguirmos dissipar nossa compreensão errônea do eu e da crença na solidez dos fenômenos, se reconhecemos que esse “eu” não tem existência própria, por que temeríamos não obter o que desejamos e sofrer o que não desejamos? 


Extraído do livro O Monge e o Filósofo - Jean-François Revel; Matthieu Ricard 

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