O budismo analisa e desmonta os
mecanismos da felicidade e do sofrimento. De onde provém o sofrimento? Quais
são as causas dele? Como remediá-lo? Pouco a pouco, ao mesmo tempo pela análise
e pela contemplação, o budismo remota às causas profundas do sofrimento. É uma
busca que interessa ao todo ser humano, seja ele budista ou não.
O
sofrimento é um profundo estado de insatisfação, talvez associado a dor física,
mas que antes de tudo é uma experiência do espírito. É evidente que diferentes
pessoas percebem de maneiras opostas as mesmas coisas, sejam elas agradáveis ou
desagradáveis. O sofrimento surge quando o “eu”, que nós prezamos e protegemos,
está ameaçado ou não obtém aquilo que deseja. Os mais intensos sofrimentos
físicos podem ser vividos de maneiras muito diferentes, segundo nossa
disposição de espírito. Além disso, os objetivos corriqueiros da existência – o
poder, as posses, os prazeres dos sentidos, a fama – podem proporcionar
satisfações momentâneas, mas não são nunca fontes de satisfação permanente e,
cedo ou tarde, se transformam em descontentamento. Tais satisfações jamais
trazem uma plenitude durável, uma paz interior invulnerável às circunstâncias
externas. Ao perseguirmos objetivos mundanos durante toda a vida, temos tão
pouca chance de atingir uma felicidade verdadeira quanto um pescador que lançar
suas redes em um rio seco.
Esse
estado de insatisfação e característico do mundo condicionado, que, por
natureza, só pode trazer satisfações efêmeras. Em termos budistas, diremos que
o mundo ou ‘círculo` dos renascimentos, o sandara, é impregnado de sofrimento.
Mas isso não é nem um pouco uma visão pessimista do mundo, é uma simples
constatação. A etapa seguinte consiste
de fato em procurar remédios para esse sofrimento. Para isso, é preciso conhecer
a causa dele. Em uma primeira análise, o budismo conclui que o sofrimento nasce
do desejo, do apego, do ódio, do orgulho, da inveja, da falta de discernimento
e de todos os fatores mentais que são chamados “negativos” ou “obscurecedores”,
porque transtornam o espírito e o mergulham em um estado de confusão e
insegurança. Essas emoções negativas nascem da noção de um “eu” que prezamos e
queremos proteger a qualquer preço. Esse apego ao eu é um fato, mas o objeto
desse apego, o “eu” não tem nenhuma existência real – não existe em parte
alguma e de modo algum como uma entidade autônoma e permanente. Não existem nas
partes que constituem o indivíduo – o corpo e o espírito -, nem fora dessas
partes, nem no agregado delas. Se argumentarmos que o eu corresponde à reunião
dessas partes, isso resulta em admitir que ele não passa de uma simples
etiqueta colocada pelo intelecto à reunião temporária de diversos elementos
interdependentes. Na verdade, o eu não existe em nenhum desses elementos, e sua
própria noção desaparece assim que esses elementos se separam. Não desmascarar
a impostura do eu é ignorância: incapacidade momentânea de reconhecer a
natureza verdadeira das coisas. Portanto, é essa ignorância a causa última do
sofrimento. Se conseguirmos dissipar nossa compreensão errônea do eu e da
crença na solidez dos fenômenos, se reconhecemos que esse “eu” não tem
existência própria, por que temeríamos não obter o que desejamos e sofrer o que
não desejamos?
Extraído do livro O Monge e o Filósofo - Jean-François Revel; Matthieu Ricard
Nenhum comentário:
Postar um comentário